Para quem gosta de automobilismo, o nome de Ricardo Tormo significa apenas a designação do Autódromo de Valencia, muito usado pela F1 em testes na pré-temporada e por outras categorias. Mas para quem gosta de motociclismo, Ricardo Tormo é muito mais do que o nome de um circuito espanhol. Para quem o viu correr, foi um dos pilotos mais rápidos da história, principalmente na chuva e um protegido da lenda Angel Nieto. Porém, sua história de vida chega a ser mais impressionante do que sua carreira nas motos e com os dez anos da sua morte completados hoje, vamos olhar um pouco mais como surgiu essa lenda valenciana.
Ricardo Tormo Blaya nasceu no dia 7 de setembro de 1952 em Ayacor, na província de Valencia. Com apenas oito anos, o pequeno Ricardo, de família humilde, se mudou para Canals e pôde trabalhar na oficina do seu tio, contudo, seu primeiro esporte foi o ciclismo, onde começava a mostrar todo o seu controle em cima de duas rodas, mas uma grande queda em sua bicicleta o fez mudar de esporte. Quando tinha 14 anos, Ricardo comprou uma moto Ducson 50cc escondido dos seus pais, que não gostavam da idéia de ter um piloto na família. Ainda em 1966, Tormo assistiu uma corrida de motos em Albacete e fixou na cabeça que seria piloto, mesmo contra a vontade dos pais. Então, Ricardo fez de tudo para comprar uma Derbi de competição e se inscreveu para uma corrida, tendo que falsificar a assinatura dos pais para poder correr e, logo de cara, mostra seu talento ao terminar em segundo na estréia. Porém, isso fez com que seu pai descobrisse tudo e de castigo, Ricardo passou anos sem poder correr.
Apenas cinco anos depois de sua aventura inicial, Tormo pôde voltar a correr e ainda em 1972 conseguiu sua primeira vitória nas motos no circuito de Guadasuar. As vitórias sucessivas fizeram com que Tormo participasse da última etapa do Mundial de 1973 na categoria 50cc, em Jarama. Com tamanho sucesso, Ricardo foi contratado em 1974 e foi nesse ano que ele encontrou o que seria seu maior adversário e amigo: Angel Nieto. À bordo de uma Derbi, Tormo se tornou o maior rival de Nieto no Campeonato Espanhol, mas nunca derrotaria o já conhecido piloto espanhol, terminando o seu primeiro certame espanhol em terceiro lugar. Em 1975, Tormo sofre o seu mais grave acidente na carreira até aquele momento no circuito de Guadalajara e fica seis meses fora das pistas, porém, quando volta numa prova de 50cc, Ricardo termina em segundo lugar, logo atrás de Nieto. A fábrica Bultaco tinha Nieto sob contrato e precisava de um segundo piloto para o Campeonato Mundial e Espanhol de Motovelocidade de 1977. Tormo era conhecido por sua coragem atrás do guidão e Nieto via no seu compatriota uma pedra preciosa a ser lapidada.
Após anos andando em motos ruins, muitas vezes preparadas por ele mesmo, Tormo teria uma equipe de fábrica o ajudando. Naquela época, a moto a ser batida era a Kreidler, onde o próprio Nieto já havia vencido alguns títulos mundiais nas categorias 50cc e 125cc. A Bultaco havia trazido todo o corpo técnico da pequena Piovaticci e também Nieto, na tentativa de conquistar o Mundial e tirar o domínio da Kreidler, que contratara o italiano Eugenio Lazzarini. Nieto e Lazzarini vinham brigando pelo título com certa regularidade no Mundial das 50cc, mas Tormo mostrou o seu talento e logo em sua primeira temporada completa no Mundial, se meteu na briga dos dois. No Grande Prêmio da Suécia em Anderstop, Tormo venceu sua primeira corrida no Mundial e mostrou uma das suas maiores características: sua maestria em corridas na chuva. Após cinco subidas ao pódio e uma vitória, Tormo termina o Campeonato das 50cc em terceiro lugar, com Nieto conquistando outro Mundial. Porém, Tormo não termina 1977 sem o gostinho do título e se torna o primeira valenciano a ser Campeão Espanhol de motociclismo, na categoria 50cc.
Para 1978, Nieto decide se dedicar unicamente na categoria 125cc, onde a moto não tinha respondido muito bem. Com isso, Tormo seria o piloto único da equipe Bultaco na categoria 50cc. Ao contrário do que poderia se supor, a responsabilidade de defender as cores da Bultaco no Mundial não foi problema para Tormo, que mostrou o quanto tinha aprendido do seu "mestre" Nieto e se torna Campeão Mundial com cinco vitórias (Mugello, Spa, Nürburgring, Brno e Rijeka) em sete corridas, derrotando Lazzarini. Como havia poucas corridas no Mundial, Tormo participa do Campeonato Espanhol nas categorias 50cc e 125cc, se tornando campeão na primeira. Contudo, isso foi o início do calvário de Tormo. A Bultaco passa a ter dificuldades financeiras e Nieto deixa a equipe, partindo para a Minarelli. Tormo passa a sofrer com a falta de competitividade da nova moto nas 50cc e sofre vários acidentes. Ele também participa do Campeonato das 125cc e conquista uma vitória debaixo de muita chuva no circuito de Imatra, na Finlândia. Porém, dos vários acidentes que sofreu em 1979, o que mais o marcou nesse período foi fora das pistas, quando atropelou dois garotos e um deles morreu.
Quando a Bultaco fechou sua equipe de competições no final de 1979, Tormo ficou desempregado e a Real Federação Espanhola decidiu abrir negociações com a equipe holandesa Van Veen para não deixar Ricardo sem correr em 1980. O time tinha o status de equipe oficial da fábrica Kreidler e o suíço Stefan Dörflinger era a principal aposta da equipe. Mesmo sem precisar do dinheiro da federação, a equipe estranhamente aceita Tormo na equipe. Nos primeiros testes, Tormo chega a andar de 2 a 3s mais rápido que os demais pilotos e após duas derrotas para Lazzarini nas duas primeiras etapas, Tormo vence na Iugoslávia e na Holanda. Quando o título parecia nas suas mãos, uma incrível sucessão de quebras deixaram Tormo na mão. O que parecia falta de sorte, suspeitas foram levantadas. Enquanto a moto de Ricardo só quebrava, a máquina de Dörflinger parecia inquebrável. Tormo lamentou nunca ter sido capaz de obter provas de que tinha sido sabotado pela própria equipe, mas se havia um castigo, Dörflinger perdeu o campeonato para Lazzarini. Muitos anos depois, o próprio Dörflinger confirmou que a equipe Van Veen não estava interessada que Tormo vencesse o Mundial e por isso o contratou. Com o melhor piloto da época em sua equipe, a Kreidler só teve o cuidado de não dar o melhor equipamento a Tormo e tirar um obstáculo a mais na frente do seu piloto favorito. Pelas palavras do próprio Dörflinger, esse foi "o momento mais negro da história do Mundial de Motovelocidade".
Em 1981, extremamente decepcionado, Ricardo decide disputar o Mundial com uma equipe própria e bate nas portas das fabricantes da época atrás de uma moto que possa comprar. Para sua decepção, nenhuma lhe presta ajuda, mas Tormo toma conhecimento de um fato que acabaria sendo decisivo. A Bultaco, que tinha lhe dado o título mundial de 1978, estava a ponto de ir à falência. Tormo vai a fábrica da montadora espanhola e encontra os operários da empresa na porta da fábrica, em greve. Quando é reconhecido, Ricardo é informado que a moto que tinha lhe dado o título de 1978 estava em um velho armazém ao lado da fábrica. Tormo é levado ao local pelos funcionários e encontra sua velha máquina toda enferrujada, sem nenhuma peça de reposição. Com muita força de vontade, Tormo tira a moto da aposentadoria forçada e com ela, Ricardo participaria do Mundial das 50cc.
Como ainda faltava um pouco de dinheito para completar a temporada, Tormo vai a uma fábrica de móveis de Valencia e consegue o patrocínio de 5 milhões de pesetas, mas havia um porém. Se não fosse campeão, Tormo teria que devolver o dinheiro. Sem dinheiro para contratar engenheiros e técnicos, Ricardo chama seu amigo de infância e mecânico Angel Carmona e o assistente Salvador Carsi, que na verdade era um encanador e tinha acabado de se casar, para iniciarem o Mundial. Os três dormiam juntos num trailer, junto com a moto, já que não havia peças de reposição. A Kreidler era a principal favorita para aquela temporada e a equipe holandesa Van Veen voltava a apostar suas fichas no suíço Stefan Dörflinger. Como Lazzarini tinha saído da equipe Iprem, que tinha lhe dado o título de 1980, a Kreidler dava o título de 1981 como fava contadas. A primeira etapa no circuito de Hockenheim foi vencida facilmente por Dörflinger, enquanto Tormo quebrava logo após a largada. Porém, na corrida seguinte, na volta de Monza ao Mundial de Motovelocidade oito anos após a morte de Jarno Saarinen, Tormo surpreende a todos ao vencer a corrida. Quando todos pensam que aquilo tinha sido um golpe de sorte, Tormo vence as duas corridas seguintes. Em Assen, Dörflinger sofre um acidente que o deixa de fora do resto da temporada, enquanto Ricardo vencia outra prova. O que parecia impossível antes de começar o ano, tornou-se realidade e Ricardo Tormo se tornou Bicampeão Mundial da categoria 50cc. Além de vencer o Campeonato Espanhol de 125cc daquele ano, Tormo recebeu a Medalha de Ouro de Mérito pelo seu desempenho ao longo do ano.
Apesar defender sem sucesso seu título das 50cc em 1982, Tormo termina o campeonato mundial das 125cc em quinto, com uma vitória em Spa, pela equipe Sanvenero. Após um ano regular em 1983, onde conquista uma vitória nas 125cc e outras nas 50cc, Tormo recebe o convite da equipe oficial da Derbi para 1984. A fabricante espanhola tinha dado vários títulos a Nieto no início da carreira do espanhol e Tormo teria a chance de desenvolver a moto de 80cc, que substituía o Mundial de 50cc a partir de 1984. Os testes de inverno são promissores e assim como Nieto tinha feito com o próprio Tormo em 1977, Ricardo indica o valenciano Jorge "Aspar" Martínez como segundo piloto da equipe em 1984. Após uma quebra na primeira corrida da temporada em Monza, a Derbi volta a Espanha para uma sessão de testes. Os circuitos espanhóis estavam ocupados naquele 24 de abril de 1984 e assim a equipe resolve fazer um teste pra lá de perigoso. Andando nas ruas da zona industrial próximo a sua fábrica, a Derbi pôs funcionários nas esquinas para indicar que ali havia um "teste". Uma mulher não respeitou as indicações de um funcionário e na hora em que dobrou a esquina com seu carro, Tormo vinha a 170 km/h. Ricardo ainda evitou a batida de frente, mas sua perna direita foi atingida em cheio. O fêmur tinha sido arrancado da bacia e somente um milagre poderia salvar a perna direita da amputação.
Quando chegou ao hospital, Tormo deu uma de Jean-Pierre Beltoise e disse que precisava daquela perna para pilotar. Os médicos salvaram a sua perna, mas sua carreira estava encerrada ali. Foram dois títulos Mundiais na categoria 50cc, 62 Grande Prêmios, 19 vitórias, 23 poles, quatro voltas mais rápidas e 36 pódios, além de oito títulos espanhóis. Aspar Martínez, que naturalmente substituiu Tormo na equipe Derbi, conquistou quatro títulos mundiais nos anos seguintes e isso é a prova de que Ricardo poderia ter conquistado mais alguns Mundiais. Apesar de não ter pilotado mais, foram realizadas mais de vinte cirurgias e Tormo teve que se submeter a vários anos de fisioterapia. O amor que Ricardo sentia pelo motociclismo não arrefeceu e ele foi gerente da equipe de Julian Miralles em 1987, que deu o primeiro título espanhol para um jovem iniciantes das corridas: Alex Crivillé. Ricardo sempre ajudava os pilotos jovens e era figura atuante na comunidade valenciana, mas em 1994 ele receberia outro baque na sua vida. Em um exame de rotina, ele descobriu que tinha leucemia. Foram anos de luta contra a doença, com um longo tratamento médico. Quando foi decidido construir um autódromo na cidade de Cheste, a comunidade valenciana decidiu homenagear Tormo dando o nome para o novo circuito de "Circuit de la Comunitat Valenciana Ricardo Tormo". No entanto, Ricardo Tormo não viu o circuito ser inaugurado. Ele faleceu no dia 27 de dezembro de 1998, vítima da leucemia.
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